28 fevereiro 2013

Leituras | Máximo Gorki, A Mãe



Leituras | A Mãe, Máximo Gorki | Lê Abílio Santos

Uma noite, após o jantar, depois de correr as cortinas das janelas, Pavel sentou-se num canto e pôs-se a ler, com o candeeiro de petróleo suspenso na parede, por cima da cabeça. A mãe, depois de lavar a louça, saiu da cozinha e aproximou-se com o passo hesitante. Ele levantou a cabeça e olhou-a com ar de interrogação. 
- Não é nada, Pavel... Sou eu - disse ela - e afastou-se vivamente, com a testa enrugada e um ar de confusão. Ficou um momento imóvel, no meio da cozinha, pensativa, preocupada; lavou as mãos cuidadosamente e voltou para junto do filho.
- Queria-te perguntar - disse, baixinho - o que é que estás sempre a ler?
Ele pousou o livro.
- Senta-te, mãe.
Sentou-se pesadamente ao lado dele e endireitou-se, atenta a qualquer coisa de grave. Em voz baixa, sem a olhar, adoptando, não se sabe porquê, um tom rude, Pavel começou a falar.
- Leio livros proibidos. Proíbem de os ler, porque dizem a verdade sobre a nossa vida de operários... São impressos clandestinamente, e se os encontrarem cá em casa metem-me na prisão... na prisão por eu querer saber a verdade. Estás a compreender?
Ela sentiu subitamente dificuldade em respirar e fixou no filho um olhar espantado. Pareceu-lhe mudado, estranho. Tinha uma voz diferente, mais baixa e mais cheia, mais sonora. Torcia, com os dedos afilados, o pêlo fino dos bigodes de adolescente, e o olhar estranho, sob as pestanas, perdia-se no vago. O medo e a inquietação pelo filho penetraram-na.
- Porque fazes isso, Pavel? - murmurou.  
Ele ergueu a cabeça, olhou-a rapidamente, e sem levantar a voz, tranquilamente, respondeu:
- Quero saber a verdade. 

Atlântico | Sophia de Mello Breyner Andresen



Mar, 
Metade da minha alma é feita de maresia.

27 fevereiro 2013

Ruy Belo | 80.º aniversário do nascimento do Poeta






O portugal futuro

O portugal futuro é um país
aonde o puro pássaro é possível
e sobre o leito negro do asfalto da estrada
as profundas crianças desenharão a giz
esse peixe da infância que vem na enxurrada
e me parece que se chama sável
Mas desenhem elas o que desenharem
é essa a forma do meu país
e chamem elas o que lhe chamarem
portugal será e lá serei feliz
Poderá ser pequeno como este
ter a oeste o mar e a espanha a leste
tudo nele será novo desde os ramos à raiz
À sombra dos plátanos as crianças dançarão
e na avenida que houver à beira-mar
pode o tempo mudar será verão
Gostaria de ouvir as horas do relógio da matriz
mas isso era o passado e podia ser duro
edificar sobre ele o portugal futuro


[Fotografia: Manuscritos de Ruy Belo | Duarte Belo, 1999]




21 fevereiro 2013

A rosa e o mar | Eugénio de Andrade




Eu gostaria ainda de falar
da rosa brava e do mar.
A rosa é tão delicada,
o mar tão impetuoso,
que não sei como os juntar
e convidar para o chá
na casa breve do poema.
O melhor é não falar:
sorrir-lhes só da janela.






20 fevereiro 2013

21 de Fevereiro | Dia Internacional da Língua Materna






Vergílio Ferreira | A voz do mar

Uma língua é o lugar donde se vê o mundo […]. Da minha língua vê-se o mar. Na minha língua ouve-se o seu rumor como na de outros se ouvirá o da floresta ou o silêncio do deserto. Por isso a voz do mar foi em nós a da nossa inquietação.


15 fevereiro 2013

Mondego | Daniel Pinheiro






Daniel Pinheiro | Mondego

Projecto final de mestrado em Wildlife Documentary Production da Universidade de Salford, Reino Unido | Documentário classificado com distinção | Filmado em Portugal em Maio e Junho de 2011 | Uma viagem pelo rio Mondego e sua vida selvagem, das montanhas até ao oceano Atlântico | Sinopse - Um rio aclamado por poetas e compositores, intimamente ligado à história de Portugal. Enquanto as suas águas se fundem com o mar, uma pequena fonte, escondida no alto da Serra da Estrela, continua a assegurar que o Mondego dê vida à sua grande variedade de habitats e de vida selvagem.


14 fevereiro 2013

Às Vezes o Amor | Sérgio Godinho






Que hei-de eu fazer
Eu tão nova e desamparada
Quando o amor
Me entra de repente
P´la porta da frente
E fica a porta escancarada

Vou-te dizer
A luz começou em frestas
Se fores a ver
Enquanto assim durares
Se fores amada e amares
Dirás sempre palavras destas

P´ra te ter
P´ra que de mim não te zangues
Eu vou-te dar
A pele, o meu cetim
Coração carmesim
As carnes e com elas sangues

Às vezes o amor
No calendário, noutro mês, é dor,
é cego e surdo e mudo

E o dia tão diário disso tudo

E se um dia a razão
Fria e negra do destino
Deitar mão
À porta, à luz aberta
Que te deixe liberta
E do pássaro se ouça o trino

Por te querer
Vou abrir em mim dois espaços
P´ra te dar
Enredo ao folhetim
A flor ao teu jardim
As pernas e com elas braços

Às vezes o amor
No calendário, noutro mês, é dor,
É cego e surdo e mudo

E o dia tão diário disso tudo

Mas se tudo tem fim
Porquê dar a um amor guarida
Mesmo assim
Dá princípio ao começo
Se morreres só te peço
Da morte volta sempre em vida

Às vezes o amor
No calendário, noutro mês é dor,
É cego e surdo e mudo

E o dia tão diário disso tudo
Da morte volta sempre em vida