03 janeiro 2013

A Nau Catrineta


Lá vem a nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.
Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.
Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.
 «Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal.»
 «Não vejo terras d'Espanha,
Nem praias de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar.»
 «Acima, acima, gajeiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal.»
 «Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terra de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar.»
 «Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.»
 «A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.»
 «Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar.»
 «Não quero o vosso dinheiro,
Pois vos custou a ganhar.»
 «Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.»
 «Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar.»
 «Dar-te-ei a nau Catrineta,
Para nela navegar.»
 «Não quero a nau Catrineta,
Que a não sei governar.»
 «Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?»
 «Capitão, quero a tua alma
Para comigo a levar.»
 «Renego de ti, demónio,
Que me estavas a atentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar.»

Tomou-o um anjo nos braços,
Não o deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;
E à noite a nau Catrineta
Estava em terra a varar.

Romance tradicional português
Versão recolhida por Almeida Garrett


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